De Zero a Cem

Contando histórias com o Facebook

No início desse mês de dezembro o jornal americano Washington Post publicou o que considero a experiência jornalística mais interessante do ano: uma matéria cuja história é narrada pela própria personagem.

Recomendo fortemente que antes de prosseguir a leitura desse post, você clique na imagem acima e leia primeiro essa surpreendente reportagem. Re-por-ta-gem. Afinal, mesmo a principal fonte tendo "escrito" uma grande parte do que foi publicado, o trabalho jornalístico teve um papel extremamente importante na produção da matéria.

O fio condutor da narrativa são as atualizações publicadas por Shana Swers em sua página do Facebook. Ela era uma consultora que compartilhou durante o ano com seus contatos na rede as expectativa e alegrias, desde os primeiros dias em que se descobriu grávida do primeiro filho, até as terríveis complicações do pós-parto. Tudo online.

Além do intenso trabalho de curadoria para selecionar as mensagens mais representativas publicadas ao longo de 2010, o repórter Ian Shapira entrevistou os amigos e familiares da consultora que comentaram nessas atualizações.

A intenção foi fornecer um contexto aos relacionamentos evidenciados pelas interações entre os usuários no mural de Shana. O resultado é um fantástico mashup das mensagens publicadas no site com informações escritas pelo jornalista.

A primeira coisa que saltam aos olhos de qualquer pessoa é o formato. Trabalhando com a estética típica da rede social, toda a estrutura da página emula um feed de notícias: comentários, "curtidas" e outros elementos estão todos lá, reproduzindo a experiência de leitura no Facebook.

Fora o parágrafo introdutório do texto, as mínimas intervenções de Ian acontecem como anotações - uma espécie de box informativo que linka palavras-chaves nos updates da consultora, com informações apuradas pelo repórter que contexutualizam a acontecimento ali narrado.

Em entrevista ao NiemanStoryboard, o editor responsável pela matéria, Marc Fisher, explica que eles tiveram que criar uma nova ferramenta para viabilizar esse layout - tanto no online, quanto no impresso.

Segundo ele, uma das intenções em publicar o experimento foi colocar os leitores para pensarem sobre a maneira como estamos compartilhando nossa vida online: "A história por si só tem uma força, e um apelo quase voyeurístico." Ele ainda completa:
Acredito que o que a faz valer a pena, além disso, são as questões que ela levanta sobre o quanto estamos vivendo no Facebook e se e como isso substitui nosso contato humano.
O requinte no detalhamento da matéria impressiona ao agregar inclusive fotos publicadas por Shana.


Mas, muito além do aspecto técnico-visual, o grande diferencial da reportagem foi dar voz ao própria personagem que protagoniza da história. Assim, Shana ultrapassa a condição de fonte sendo colocada em uma posição de narradora-colaboradora da matéria.

A primeira vez que vi esse termo trabalhado de forma conceitual foi em Possibilidades inovadoras no processo jornalístico: do entrevistado-fonte ao narrador-colaborador, artigo de Mônica Caprino e Priscila Perazzo. No texto são feitos questionamentos sobre o processo de entrevista, o uso de fontes e personagens em reportagens, e é proposto o uso de técnicas de história oral no jornalismo.

Há um trecho emblemático do artigo que diz:
No caso do jornalismo atual, parece que as entrevistas face a face tem saído de pauta. Cada vez mais se recorre ao uso do telefone e do e-mail.
O enxugamento das redações obriga repórteres a produzir mais de uma matéria por dia. Normalmente, eles não buscam histórias, mas declarações que se encaixem em um texto previamente pensado e planejado.
As autoras ainda complementam, dizendo com base em outros estudos, que a entrevista cada vez mais é tratada como um rito: "o objetivo é somente obter uma palavra para confirmar idéias e pressupostos já levantados na pauta, na redação, entre os próprios jornalistas".

O que acontece na matéria do WP é o inverso. Ian soube da caso através de sua esposa que conhecia Shana. A história estava lá, esperando para ser (re)contada. O trabalho do repórter foi fazer com que as anotações complementassem os vazios de informação entre um update e outro da personagem, e não encontrar meras "aspas" para subsidiar suas opiniões.

Um constante questionamento que tenho lido sobre esse experimento é se esse formato serviria em outros casos menos convencionais. Acredito que sim. Pelo menos foi essa minha intenção em fazer curadoria de conteúdos no Radar Eleitoral. E vem mais por aí.

Explore os links desse post e deixe-me um comentário

[:] Reportagem A Facebook story no site do Washington Post
[:] Entrevista com Marc Fisher - editor da matéria
[:] Artigo sobre Entrevistado/Fonte - Narrador/Colaborador
[] Perguntas & Respostas com o Ian Shapira - repórter

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